O projeto de lei que proíbe a validação de delações premiadas fechadas com presos e criminaliza a divulgação do conteúdo dos depoimentos, em tramitação na Câmara dos Deputados, é alvo de críticas de investigadores e juristas.
A delação premiada é um meio de obtenção de prova. O acusado ou indiciado troca benefícios, como redução da pena ou progressão de regime, por detalhes do crime cometido.
O assunto retornou ao debate político nesta semana, após o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), decidir pautar um requerimento de urgência para a tramitação do projeto de lei. O pedido para acelerar a matéria ainda não foi votado.
Se antes a proposta, apresentada pelo PT na esteira da Lava Jato, tinha como objetivo impedir que réus delatassem para obter benefícios e evitar a divulgação de conteúdo atingindo o governo petista, hoje o Centrão apadrinha o projeto, enquanto parlamentares veem com preocupação delações que podem atingir o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Especialistas ouvidos pelo g1 veem o projeto com desconfiança e apontam que ele representa um “retrocesso”, porque pode esvaziar os mecanismos de delação premiada e emperrar avanços em investigações.
No texto, não está claro se o texto pode ou não retroagir para anular delações premiadas já validadas, como a do ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL), Mauro Cid, que atinge diretamente o ex-presidente.
Mas juristas avaliam que, por se tratar de matéria de direito processual penal, as regras não poderiam retroagir para atingir delações premiadas já homologadas
Veja os principais pontos do projeto:
A delação premiada só poderá ser validada pela justiça se acusado ou indiciado estiver respondendo em liberdade ao processo ou investigação instaurados em seu desfavor;
Também passará a ser crime, com previsão de pena de 1 a 4 anos e multa, divulgar o conteúdo dos depoimentos colhidos no âmbito do acordo de colaboração premiada, pendente ou não de homologação judicial;
Nenhuma denúncia poderá ter como fundamento apenas as declarações de agente colaborador (essa regra já vale atualmente – todas as informações descritas em delação têm de ser corroboradas com outros elementos da investigação);
As menções aos nomes das pessoas que não são parte ou investigadas na persecução penal deverão ser protegidas pela autoridade que colher a colaboração (regra que também já tem alguma base jurídica, pois o tratamento de dados pessoais já é regulado pela Lei Geral de Proteção de Dados)
Risco a frentes de investigação
Integrantes da cúpula da Procuradoria-Geral da República (PGR) ouvidos de forma reservada pela reportagem classificaram a proposta de limitar delações de “grande retrocesso”.
Segundo esses subprocuradores, caso passe, o projeto vai esvaziar o instrumento das delações premiadas e pode atingir várias frentes de investigação e não apenas casos de corrupção.
Um sequestrador preso em flagrante ficaria impedido, por exemplo, de informar onde está o cativeiro do sequestrado.
“Essa proposta parte de um pressuposto equivocado de que a delação é prova em si. A colaboração não é uma prova, ela indica provas, se não tiver provas, ela não terá efetividade, não terá alcançado seu objetivo”, afirmou um subprocurador que compõe a Câmara Criminal da PGR.
Um delegado da Polícia Federal, também de forma reservada, classificou o projeto de “violação a um possível beneficio aos investigados” e uma “hipocrisia política”
‘Tentativa de ressuscitar a discussão’
O advogado Eduardo Ubaldo, especialista em direito Constitucional, avalia que o debate é legítimo, porém inspira desconfianças em meio ao cenário em que está inserido.
“Em um contexto de abusos judiciários e de vulgarização do instituto da delação premiada, o debate sobre a proibição de presos delatarem é legítimo. Pessoalmente, me parece um retrocesso no combate ao crime organizado, mas a discussão é válida”, avalia o profissional.
Cabe, no entanto, “desconfiar da tentativa de ressuscitar discussão anterior à própria atualização, em 2019, da Lei Anticorrupção de 2013 que previu o instituto da delação premiada. Se, como parece, o objetivo for anular delações já homologadas, não me parece que seus defensores terão sucesso”.
No texto da matéria também não está claro se o texto pode ou não retroagir para anular delações premiadas já validadas, como a do ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL), Mauro Cid, que atinge diretamente o ex-presidente.
“Mas, por se tratar de uma alteração em norma de direito processual, a aplicação nos processos em curso seria imediata e sem caráter retroativo, produzindo efeitos só daqui para a frente. Se formalizados regularmente conforme as exigências da legislação em vigor, os atos probatórios já produzidos (e a delação é meio de prova) permanecem válidos”, detalha Ubaldo.
A professora especialista em direito penal da Fundação Getulio Vargas (FGV), Luisa Ferreira, concorda com o entendimento e pondera: “O projeto de lei limita a liberdade daquelas pessoas que estão presas com algum fundamento concreto, e vão deixar de poder delatar. Se a gente fizesse isso evitando prisões preventivas sem fundamento, já resolveria o problema”.
Na visão dela, a questão da criminalização também deve ser “pouco eficaz”, uma vez que não deve atingir a imprensa, que tem preservado o sigilo da fonte e se ampara nos princípios de liberdade de imprensa.
‘Premissas ultrapassadas’
Para Pedro Porto, advogado criminalista e mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), o projeto parte de “premissas ultrapassadas”.
Isso porque, segundo ele, a atual legislação sobre delação premiada já tem as garantias necessárias para promover a transparência e a correção do processo.
“Embora o projeto de lei vise assegurar manifestações voluntárias e livres de coação – como devem sempre ser, ele se volta a um outro cenário e parece ignorar todas as modificações promovidas na lei da colaboração premiada em 2019, tais como a obrigatoriedade de gravação das tratativas, a participação do advogado em todos os atos, a maior rigidez judicial no exame da voluntariedade daqueles submetidos à medidas cautelares”, afirmou o especialista.
“Essas são garantias que se mostraram eficazes na prevenção de abusos e, ao mesmo tempo, permitem que o acordo seja realizado por todo aquele que possui o interesse. O PL parte de premissas ultrapassadas e, caso aprovado, não retroage aos acordos já homologados, pois trata de norma de natureza processual penal, portanto, irretroativa, incidindo somente para as colaborações futuras”, completou.
Fonte: Jornal de MT