O Supremo Tribunal Federal (STF) vai julgar na semana que vem ações que tratam da responsabilidade das redes sociais sobre conteúdos publicados em suas plataformas.
Uma dessas ações, que questiona trecho do marco civil da internet, é apontada por especialistas, parlamentares e ministros como uma oportunidade de a Corte estabelecer entendimentos sobre o que fazer diante de publicações que atentam contra direitos fundamentais.
A discussão ganhou corpo nos últimos meses com a volta do debate sobre o chamado PL (projeto de lei) das Fake News na Câmara dos Deputados. Na última semana, o texto chegou a ser incluído na pauta da Câmara, mas a votação foi adiada da falta de consenso.
Os defensores do projeto afirmar que a internet não pode ser uma terra sem lei.
Entre outros pontos, o texto torna crime a promoção ou financiamento de divulgação em massa de mensagens com conteúdo inverídico por meio de conta automatizada, as chamadas contas-robôs. Estabelece ainda que provedores serão responsabilizados pelos conteúdos de terceiros cuja distribuição tenha sido impulsionada por pagamento.
A discussão em torno do marco civil da internet lida com situações do mundo virtual parecidas com a do projeto em tramitação na Câmara.
Entenda o que pode ser discutido pelo Supremo e os efeitos práticos na discussão do PL das Fake News:
O que é o marco civil da internet?
O marco civil da internet entrou em vigor em 2014, aprovado pelo Congresso e sancionado pela então presidente Dilma Rousseff (PT). Funciona como uma espécie de Constituição para o uso da rede no Brasil.
A lei estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para usuários e empresas.
O marco civil está em vigor. Mas o entendimento que partir do STF pode mudar interpretação de pontos importantes.
O que é questionado no STF?
Duas ações questionam a constitucionalidade de artigos do marco civil da internet.
Em uma delas, que está sob relatoria da ministra Rosa Weber, são questionados trechos que tratam da obrigação das plataformas em disponibilizar registros e comunicações privadas de usuários a partir de decisões judiciais.
Esse ponto é usado como fundamento jurídico para a derrubada de aplicativos de mensagens, por exemplo.
Em outra ação, relatada pelo ministro Dias Toffoli, a discussão é sobre o dispositivo que estabelece as circunstâncias nas quais um provedor, como é o caso das redes sociais, pode ser responsabilizado civilmente por danos causados em razão de conteúdo publicado por terceiros.
Há ainda uma terceira ação, nas mãos do ministro Luiz Fux, que também trata da retirada de conteúdos por plataforma digitais, mas não foi motivada pelo marco civil.
São nas últimas duas ações que especialistas ouvidos pelo g1 apontam que há caminho para uma espécie de regulação dos critérios para o controle de conteúdo que já é feito pelas plataformas.
Como funciona a responsabilização das plataformas?
Segundo o marco civil da internet, os provedores só podem ser responsabilizados quando, após ordem judicial, não removerem o conteúdo.
Essa segunda ação quer que, em algumas hipóteses, não seja necessário um longo processo judicial para haver a responsabilização, mas sim dispositivos mais ágeis.
“O problema da atual legislação é que impõe a uma vítima a necessidade de ir à Justiça e passar por todos os processos do Poder Judiciário. Em comparação, a internet é ágil, rápida e volátil; a Justiça, lenta por natureza”, diz o professor de Direito Civil João Quinelato.
O que prevê o PL das Fake News nesse caso?
Em discussão no Congresso, o PL das Fake News estabelece o chamado “dever de cuidado”, no qual os provedores precisam atuar de forma “diligente” para prevenir ou mitigar conteúdos ilícitos veiculados nas plataformas.
O descumprimento dessas ações pode levar a uma responsabilização civil solidária pelos danos das plataformas.
As plataformas podem ainda ser responsabilizadas solidariamente pelos conteúdos nocivos de terceiros que:
foram impulsionados nas plataformas;
são enquadrados como risco iminente de danos à dimensão coletiva de direitos fundamentais;
e que são de “conhecimento prévio” dos provedores – uma denúncia feita por usuários, por exemplo, seria considerada como conhecimento prévio.
Segundo o mais recente relatório do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), essas definições “constituem exceções” ao dispositivo do marco civil questionado no STF.
O que os ministros podem decidir?
Ministros ouvidos pela reportagem afirmam que a Corte deve fazer uma interpretação conforme a Constituição desse artigo do marco civil da internet.
Nesse tipo de decisão, segundo especialistas, os ministros julgariam o dispositivo da lei como constitucional, mas estabeleceriam critérios para a retirada de conteúdo, a partir dos direitos fundamentais previstos na Constituição.
Em entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, o ministro Gilmar Mendes, do STF, avaliou que a atual legislação está ultrapassada.
“Fizemos uma boa lei, o marco civil da internet, no passado, mas a mim me parece que ela está ficando passé, démodé, ela já não atende a realidade, sobretudo na leitura de que a retirada de conteúdo depende sempre de decisão judicial”, disse na última segunda (8).
Segundo Quinelato, que participou de audiência em abril promovida pela Corte para discutir o tema, é importante frisar que o Supremo não deve avançar sobre questões consideradas controversas na avaliação de conteúdo na internet.
As regras que os ministros podem fixar devem ser sobre conteúdos que “claramente” violam preceitos constitucionais, como, por exemplo, publicações de cunho racista.
Outra possibilidade é declarar o dispositivo como inconstitucional e apresentar hipóteses sobre o processo de retirada de conteúdos.
“O que tudo tem apontado é que o Supremo não vai interpretar que o modelo atual não funciona. Muito provavelmente esse modelo judicial não deve ser adotado”, disse o professor.
A partir da conclusão do julgamento e publicação do acórdão, a interpretação adotada pelo STF passa a valer para todas as instâncias da Justiça.