Escravos da moda
POR BÁRBARA VETOS
Em 2024, o Brasil registrou um caso de tráfico de pessoas por dia, de acordo com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Entre suas definições, o tráfico humano é caracterizado pelo recrutamento ou transporte de indivíduos recorrendo a ameaças, uso da força ou outras formas de coação para fins de exploração. Suscetíveis a diversas violações e abusos, essas vítimas comumente acabam sofrendo também com o trabalho análogo à escravidão, frequentemente encontrado na indústria da moda.
Muitas vezes, tudo começa com promessas de uma vida melhor. “São pessoas em situação financeira delicada, que são levadas a deixar seu país de origem em busca de emprego, qualidade de vida, e prosperidade”, explica Valdecir Babinski, mestre em Design de Vestuário e Moda pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).
Ao chegar ao país, no entanto, a realidade é completamente diferente. Babinski conta que normalmente os passaportes são retidos e as vítimas ficam em acomodações adjuntas à fábrica. “A liberdade dessas pessoas passa a ser cerceada, porque elas entram em um sistema de dívida que não permite que saiam dessa situação.”
Segundo dados do Dossiê Trabalho Escravo e Migração Internacional, de 2010 a 2023, 677 pessoas foram escravizadas no setor têxtil no Brasil – 472 estrangeiros e 205 brasileiros. A maioria em áreas urbanas, especialmente na cidade de São Paulo. Entre os estrangeiros resgatados do trabalho análogo à escravidão entre 2010 e 2023 estão os bolivianos (43%), seguidos dos paraguaios (21%), haitianos (16%), venezuelanos (8%) e peruanos (7%).
Condições do trabalho análogo à escravidão
Além do endividamento crescente, muitas dessas pessoas não conhecem seus direitos e as leis que as protegem, ou mesmo têm dificuldade de identificar aquela relação como análoga à escravidão. “O fast fashion trabalha sob a exploração da miserabilidade humana. Ele pode tirar um trabalhador da extrema pobreza e elevar para a pobreza, mas não mais do que isso”, critica o especialista. Essa falsa ilusão de condições melhores é um dos fatores que impede a compreensão das violações sofridas.
Centros comerciais e de confecção, como a região do Brás e do Bom Retiro, em São Paulo, são palco comum de flagrantes de trabalho análogo à escravidão. Em 2019, empresas de ambos os bairros entraram em um acordo com o Ministério Público do Trabalho para pagar R$ 324 mil de indenização às vítimas.
“Temos leis trabalhistas que protegem os trabalhadores da indústria têxtil, mas esse lapso entre a lei e a fiscalização é o que faz com que aconteça a exploração do trabalho”, comenta.
Segundo Babinski, existem relatos de pessoas que querem sair daquela situação ou circular pela região, mas são impedidas. “Figurativamente, é como se elas estivessem acorrentadas à máquina de costura.”
O problema não é só a situação em que essas pessoas se encontram, mas o que acontece depois que as empresas são flagradas. “Quando isso ocorre, muitos trabalhadores vão parar nas ruas ou são extraditados para seus países de origem”, relata. Para ele, além de leis mais rígidas, falta oferecer suporte às vítimas que estão em liberdade.
Por todo o mundo
A exploração da mão de obra no mercado da moda não se restringe ao Brasil. Nações do Leste Asiático registram uma série de escândalos de trabalho análogo à escravidão. Países como China, Bangladesh e Camboja possuem leis mais frágeis e flexíveis, o que acaba por perpetuar condições não dignas de trabalho.
Nike, Shein e Zara são algumas das empresas que já foram acusadas de terem trabalho análogo à escravidão em sua cadeia produtiva (veja outras companhias no final do texto). No caso das duas primeiras, também houve denúncias de trabalho infantil.
“Isso vem da lógica do fast fashion, que oferece ao consumidor muito mais do que ele está precisando ou pode adquirir. As empresas precisam produzir em grande quantidade – e ter muitos funcionários –, mas querem fazer tudo isso com gastos mínimos para lucrar mais”, comenta Babinski.
O documentário Inside Shein Machine: Untold, produzido pela emissora britânica Channel 4, revela os bastidores precarizados de produção da gigante chinesa, símbolo do fast fashion. Com funcionários exercendo jornadas de até 18 horas e produzindo cerca de 500 peças diariamente – recebendo o equivalente a menos de R$ 1,00 por peça –, a produção escancara o lado sombrio por trás das roupas da moda e dos baixos preços tão atrativos.
18h
produzindo cerca de 500 peças de roupa por menos de R$ 1,00 cada
Controle da cadeia de produção
Uma alegação comum por parte das empresas denunciadas, como a Shein, é de que elas têm pouco controle sobre o restante da cadeia. Isso acontece devido à constante terceirização do setor, em que outras empresas e facções de confecção passam a compor a produção.
O contexto das facções é geralmente informal. De acordo com Babinski, ela pode ter como espaço uma garagem ou os fundos de uma casa, em condições precárias, envolvendo principalmente mulheres. Cenário retratado no documentário Estou me guardando para quando o carnaval chegar, do cineasta Marcelo Gomes, que se passa no município de Toritama, em Pernambuco – conhecido como a capital do jeans. A produção mostra a vulnerabilidade vivenciada pelos trabalhadores no setor e os impactos da fabricação de jeans em toda a região, ao mesmo tempo que mostra o desejo das pessoas de se beneficiarem e melhorarem de vida com esse tipo de trabalho.
“Muitas vezes, são senhoras que não conseguiram se aposentar, que não foram alfabetizadas e que sabem mais ou menos o quanto devem cobrar, mas abraçam as propostas da indústria”, explica Babinski. É por meio desses núcleos de produção que o setor se apoia e se expande.
Ele, no entanto, chama a atenção para um paradoxo que surge das discussões de sustentabilidade e relações sociais e trabalhistas mais saudáveis. Ao mesmo tempo que é preciso ter mais leis, fiscalização e estratégias de combate à exploração da força de trabalho, não se pode criar uma crise de desemprego.
Escândalos fast, mudanças slow
Amíssima – Em 2018, a marca de roupas femininas Amíssima
foi investigada pelo Ministério Público
do Trabalho em São Paulo (MPT-SP) por
trabalho análogo à escravidão envolvendo 14
bolivianos. Eles trabalhavam cerca de 14 horas
por dia – sem direito a descanso semanal
– em instalações precárias.
Renner – Em 2014, 37 bolivianos foram resgatados
em condições análogas à escravidão em uma
oficina de costura terceirizada em São Paulo.
Os trabalhadores eram submetidos à servidão
por dívida e tinham longas jornadas.
Nike – Em 2016, uma fábrica de confecção em
Itaquaquecetuba (SP) foi alvo de uma
investigação por suspeita de trabalho análogo
à escravidão. No local, foram encontradas peças
de roupa da marca Hurley, pertencente à
Nike. Os 14 trabalhadores resgatados viviam
e trabalhavam em um ambiente insalubre,
enfrentando jornadas de mais de 15 horas.
Zara – Em 2011, o Ministério do Trabalho e
Emprego (MTE) encontrou irregularidades
envolvendo duas empresas – Aha e Rhodes –,
que realizavam confecções para a marca espanhola
Zara. As vítimas eram em sua maioria
bolivianas e peruanas, que viviam em um local
insalubre, trabalhando sob jornadas extensas e
submetidas a dívidas crescentes.
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