Segundo o MPF, os laudos necroscópicos feitos pelos dois médicos omitiram que as vítimas foram torturadas. Sônia Maria e Antônio Carlos integravam a Aliança Libertadora Nacional (ALN), um dos grupos mais destacados de oposição à ditadura militar. Ela era viúva do estudante Stuart Edgart Angel Jones, que foi morto pela repressão em 1971.
Em novembro de 1973, eles foram capturados quando viajavam de São Vicente, no litoral paulista, para São Paulo. Não há informações oficiais sobre o que ocorreu após essa captura, mas a hipótese mais provável, segundo o Ministério Público, é a de que os dois tenham sido mantidos em um centro clandestino na zona sul da capital paulista, conhecido como Fazenda 31 de Março, onde foram torturados por dias, até que foram executados a tiros. Os corpos foram depois encaminhados ao IML com a marcação de uma letra T, referente à palavra terrorista e que indicava aos legistas que deveriam tomar certas precauções, como a omissão de dados que pudessem apontar a prática de tortura.
Nos laudos necroscópicos, os dois médicos-legistas teriam, segundo a denúncia, negado as evidências de tortura, limitando-se a informar que os militantes haviam morrido em decorrência de perfurações por projéteis. Essa informação convergia para a versão oficial que foi produzida na época de que teria ocorrido uma suposta “troca de tiros com os agentes de repressão”. No atestado de óbito de Sônia Maria, o médico-legista Shibata também deixou de identificá-la com seu verdadeiro nome, utilizando apenas o codinome, o que trouxe dificuldades para que familiares pudessem encontrar o seu corpo.
Sônia Maria e Antônio Carlos foram enterrados como indigentes no cemitério Dom Bosco, em Perus, na zona norte de São Paulo. As ossadas só foram encontradas em 1991.
Segundo o Ministério Público, relatórios necroscópicos pós-exumação e uma análise de fotos registradas logo após a morte comprovaram as omissões que foram feitas nos laudos produzidos pelos dois médicos.
O MPF denunciou Shibata e Valentini pelo crime de falsidade ideológica. Shibata também foi denunciado pelo crime de ocultação de cadáver, registrando informações que teriam dificultado que a família de Sônia Maria localizasse o seu corpo.
Para o procurador da República Andrey Borges de Mendonça, autor da denúncia do MPF, os crimes que teriam sido cometidos pelos dois médicos não poderiam ser amparados pela Lei da Anistia, que foi decretada em 1979 e anistiou todos os crimes políticos cometidos no período da ditadura, estendendo o benefício não só para as vítimas da repressão, mas também para os torturadores.
“Os delitos foram cometidos em contexto de ataque sistemático e generalizado à população, em razão da ditadura militar brasileira, com pleno conhecimento desse ataque, o que os qualifica como crimes contra a humanidade – e, portanto, imprescritíveis e impassíveis de anistia”, disse o procurador, em nota.
Shibata já foi alvo de outras oito denúncias do MPF por, segundo o MPF, forjar laudos cadavéricos de militantes políticos, entre eles, o do jornalista Vladimir Herzog, morto em 1975 nas dependências do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Já Valentini foi denunciado outras duas vezes pelo Ministério Público por práticas desse tipo.
Procurado pela Agência Brasil, o advogado Ivo Galli, que defende Shibata, afirmou que esta nova denúncia contra seu cliente “não tem nenhum sentido”. Ele disse que a Lei da Anistia “abrangeu todo mundo à época, tanto terroristas quanto militares” e que “o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a validade dessa Lei da Anistia”.
Segundo ele, “vários outros processos a esse respeito e com essa mesma finalidade” já foram rechaçados pela Justiça. “Não tem muita razão de ser essa denúncia”, disse.
Até o momento, a reportagem não conseguiu localizar Valentini ou seu advogado de defesa.