A gentileza e amabilidade do nonagenário guia a conduzir o visitante é o que mais torna agradável ao observador o mergulho iconográfico sintetizado pelas coleções em exposição no saguão da Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso, na mostra intitulada “Uma viagem no tempo do colecionismo”, oferecida ao público mato-grossense pelo Clube Filatélico Numismático e Afins de Cuiabá.
A nacionalidade do gentil anfitrião neste enriquecedor passeio pela História, de imediato declarada pelo sotaque d’além mar, remete à relação filial do Brasil para com a nação-mãe do abençoado solo pátrio, o “imenso Portugal” de que nos falava o poeta – digna de nota a observação, a propósito passeio pela história proposto na mostra.
Ruben Fábio Matos Ferreira é curador honorário da exposição, presidente de honra da instituição à qual abriu as portas da Casa o Instituto Memória do Poder Legislativo (IMPL) – responsável pela montagem e curadoria.
“É com imensa satisfação que mais uma vez o Instituto Memória reafirma a parceria com o Clube a fim de oferecer à população mato-grossense a oportunidade ímpar de enriquecimento cultural, além de quiçá despertar o interesse da juventude para o colecionismo e assim dar nossa colaboração para que não desapareça nem fique esquecido este costume tão saudável herdado de antepassados que se vai perdendo nestes tempos do mundo digital”, sintetiza a superintendente do IMPL, Mara Regina Visnadi.
NUMISMÁTICA
Matos Ferreira nasceu no município do Funchal – capital da Ilha da Madeira, principal do homônimo arquipélago e território ultramarino português, situado a leste da costa africana, no Atlântico -, onde ainda na infância, lá nos distantes “oito ou nove” anos, despertou a incurável paixão que desde então o acompanhou pela vida toda.
“Numismática – palavra cuja origem vem do grego nomisma e, por intermédio do latim, numisma, que em tradução ao idioma pátrio significa moeda – é a ciência da qual são objetos de estudo moedas, cédulas e medalhas sob perspectiva histórica, artística e econômica, assim por extensão o colecionismo de tais peças”, leciona o ancião ao encantar o ouvinte no mostrar ínfima porção de seu vasto acervo pessoal construído e guardado com disciplina e zelo ao longo de oito décadas, moeda após moeda, cédula após cédula.
Na coleção completa estão todas – isso mesmo, todas as moedas brasileiras cunhadas na República, das que já havia no ano de 1889, até a mais recente posta em circulação pelo Banco Central do Brasil. Além de algumas relíquias que remontam ainda mais atrás ainda naquele distante século XIX.
Pequena parte deste tesouro pode ser vista na exposição.
FILATELIA
Antes das moedas, porém, vieram os selos.
“Na minha juventude agora já não dá para lembrar muita coisa”, brinca em seu cativante e positivo humor o decano do colecionismo em Mato Grosso, do alto de seus mais de noventa janeiros – enigmático até na dualidade ao não dizer “da”, mas “na” juventude agora.
É mesmo um jovem ele, com a experiência acrescida pelo tempo.
Nascido em 1933, contava os seis aninhos quando teve início a 2ª Guerra Mundial e doze quando o sangrento conflito teve seu desfecho com cruel requinte de tons apocalípticos no apavorante cogumelo nuclear que varreu do mapa as cidades japonesas de Nagasaki e Hiroshima, genocídio por milagre talvez não dizimou à totalidade, indistintamente, milhares de inocentes – homens, mulheres, velhos, crianças.
Não o diz – mas a expressão consternada mostrada discretamente no rosto marcado pelos traços do tempo, a fala embargada, o olhar embotado -, o transparecem na tristeza que por insignificante fração de segundo se apodera do ancião. Um piscar de olhos, talvez menos.
Alegria contagiante, luminescente, torna ao recordar o começo do casamento de uma vida toda – literalmente! Lucidez extrema segue.
Lembra que no contexto de então – entre tantos patrícios emigrados para a chamada à época “África Ocidental Francesa”, particularmente para o então ‘Congo Belga’, desde a independência, República do Congo – alguns tios e tias para lá foram, trabalhar na exploração petrolífera, a serviço da Shell Corporattion – mesmo empregador e trabalho que levou também outros parentes e amigos à região caribenha nas então Antilhas Holandesas, hoje Curaçao.
“Era frequente e volumosa a correspondência familiar, muitas e muitas cartas, muitos e muitos selos, tão bonitos que os comecei a colecionar; daí comecei a pegar caixinhas de fósforos e as colar umas sobre as outras, uma miniatura de gaveteiro, onde os guardava”.
Sua coleção, reconhecida internacionalmente por entidades e amantes da filatelia – estudo e colecionismo de selos postais -, guarda preciosidades dentre as quais a mais cara joia é nada menos que o segundo selo postal a ser lançado em todo o mundo e primeiro em nosso país: o raríssimo “Olho de Boi”, impresso à época do Império, em 1843, sob Pedro II.
Fica atrás apenas – e por apenas três anos! – do “Penny Black”, que começou a circular na Inglaterra a 6 de Maio de 1840 – a ideia do selo postal para r pré-pagamento do correio foi de Sir Rowland Hill (1795-1789), incluída nas suas propostas para a reforma do sistema postal bretão, ainda anos antes, em 1837.
LIÇÕES
Ruben Flávio adotou o Brasil na condição de segunda pátria-mãe – em simetria inversa à relação histórica a unir em fraternos laços os dois países, os dois povos, a língua mesma – unificada afinal no tratado ortográfico – a “flor do lácio” de que nos falava o poeta
Pisou neste solo em algum dia do mês de setembro do ano de 1957, e fixou raiz – de início, na capital paulista. Veio para trabalhar, empregado por gigante no setor de oxigênio industrial – “aquele acondicionado em grandes cilindros de alta pressão, que as pessoas usam em diversos processos para combustão, se vê em soldas, se vê em cortes de partes metálicas na indústria siderúrgica, só por exemplo”, vai ensinando o ancião enquanto privilegia o ouvinte nas recordações e lições acumuladas na longevidade.
“Na época só havia três empresas nesse mercado em todo o país, todas com braços parceiros noutros grandes países, a que trabalhei era ligada a empresas norte-americanas, nossas concorrentes tinham parceiros na Alemanha, se não me engano, e a outra não tenho mais certeza, salvo engano com os italianos”, conta e de presente oferece ‘en passant’ quase a síntese sobre oligopólio transnacional no estratégico mercado de insumos industriais de base produtiva, fatiado por meia dúzia de corporações e países.
Lecionar também é amor para sempre, é notório apenas ao ouvir seu relato de vida. Gratidão no fazer questão de ir mencionando aqui e acolá amigos amantes do colecionismo que com ele plantaram a semente da confraternização produtiva entre aficionados do colecionar peças que vão contando histórias e histórias que vão sendo cotadas.
Menciona com especial carinho que não declara, mas nota-se nas palavras, nos olhos, na face, Sirlei Couto da Silva, servidora aposentada dos Correios aqui em Mato Grosso, que durante décadas foi a responsável pelo Departamento de Filatelia e fiel parceira sua.
Em abnegado e gratificante magistério, por mais de vinte anos, Sirlei e Rubem levaram a um sem-número de escolas e estudantes, talvez a incontáveis milhares de crianças e adolescentes o despertar do gosto pelo colecionismo, e assim pelo conhecimento simbolizado em cada peça, de cada coleção.
“Hoje não conto nos dedos das duas mãos, e nem sei se não mais até contando os dos pés, quantos homens e quantas mulheres, que conheci jovens, de calças-curtas e hoje são médicos, advogados, cientistas, doutores, professores, têm família, filhos, netos até… São hoje meus amigos aos quais eu tive a oportunidade e o prazer de apresentar-lhes o colecionismo, a filatelia, a numismática. E devo muito disso especialmente à Sirlei”, declama quase a gratidão sincera.
PÉROLA
De súbito, no rebuscar lembranças, outra vez imperceptível quase aos cinco sentidos, a tristeza que numa infinitésima fração de milissegundo interrompe a vibrante alegria tão peculiar quanto cativante a quem ouve a narrativa.
De consternado vai voltando ao alegre, entre o que a gravidade das palavras traz para a serenidade quase neutra do ministério, e oferece uma pérola.
“Houve nesses anos todos uma ocasião que nunca esqueci, não sei talvez agora lembrar com precisão em qual escola, nem mesmo em que ano foi, mas isso não importa… Aconteceu que cheguei para dar-lhes a palestra e os estudantes estavam todos eles e todas elas confortavelmente sentados em suas cadeiras, e a professora para quem não havia sobrado cadeira alguma teve de se sentar no chão, sem que nenhum daqueles meninos, nenhuma daquelas meninas, a ela oferecesse o assento, como deveria ser, pois não é?”
“Não chamei-lhes a atenção, chamei a atenção da professora: ‘como a senhora está a permitir que tal coisa aconteça’, perguntei a ela, que ficou calada até que alguém dentre aqueles jovens estudantes, todos eles e todas elas adolescentes na flor da juventude, afinal se levantou e a ela deu lugar para que sentasse”.
“Pois aí, chamei-lhes também a atenção antes de dar início a palestra sobre colecionar”. Aqueles privilegiados, ainda que por tão apertado tempo, com a extraordinária oportunidade de o conhecer e ouvir, colecionam lições uma após outra e saem maravilhados com a lhaneza do ensinar, tão própria e natural a brotar da essência desse iluminado ser a distribuir com alegria e extrema lucidez, a luz.