No lado de fora, o sol do meio-dia brilhava com uma força incomum no outono. Dentro do carro, porém, a temperatura emocional de Nathalie Ayres era a de um inverno cinzento e gelado. Durante o trajeto de cerca de 40 minutos da zona sul ao centro da capital paulista, as lágrimas da jornalista embaçaram ruas, avenidas e a alegria de quem curtia a folga naquele sábado. Mesmo estando sozinha, as canções vindas do pen drive
e a conversa que ensaiava ter com o namorado quebravam o silêncio no interior do veículo.
Queria dirigir os passos que daria dali em diante com a mesma prática e segurança com as quais guiava o Celta vermelho. Mas assumir o volante de suas decisões era algo novo para Nathalie. Só de pensar, a insegurança batia. Durante dois anos e meio, fez de tudo para ser a namorada perfeita. Achava que o sucesso da relação era responsabilidade dela.
“Eu me sentia numa corda bamba. Como se fosse uma situação tão frágil, tão delicada, que um movimento mais brusco, errado, quebraria tudo”, recorda. Dependia de Nathalie, portanto, impedir que os versos da canção popular se cumprissem em sua vida como uma profecia: O anel que tu me destes era vidro e se quebrou.
O amor
que tu me tinhas era pouco e se acabou.
Ausente de si mesma
Cuidar desse sentimento como um cristal ameaçado deu certo no começo. Para agradar o companheiro, Nathalie punha as vontades dele sempre acima das dela. Demorou para perceber que, ausente de si mesma, tudo o que fazia era acumular incômodos e falhas de comunicação que foram desgastando o relacionamento até fazer dele um tecido daqueles que podem rasgar a qualquer momento.
No carro, ela reconstituía a breve conversa virtual que eles tiveram pela manhã. Planejava vê-lo só à noite. Mas a reclamação de Henrique, de não ser compreendido, a fez mudar de ideia. Lembrou-se também do que uma chefe lhe disse anos atrás, ao observar que ela sempre largava o que estava fazendo, por mais importante que fosse, para acudir quem pedia ajuda. “Ser colaborativa é sua grande fortaleza e também sua grande fraqueza”, dissera a diretora da empresa.
A memória de Nathalie ainda resgatou a pergunta do terapeuta quando ela confessou a dificuldade de trazer seus limites para as relações. “Mas você precisa se impor para os outros? Não basta se colocar?”. Chegando à quitinete de Henrique, pela primeira vez o casal teve um
diálogo franco
, olho no olho, cada um à vontade com sua verdade.
Um terreno que precisa de cuidados
O problema é que a conversa terminou em discussão. “Não aguento mais. Não preciso disso”, Nathalie pensou. Recolheu suas coisas e foi embora, surpreendendo o namorado. Se até aquele instante achava que dizer “não” era algo que não combinava com ela, mudou de opinião a primeira vez que pronunciou o monossílabo, pois sentiu um agradável sabor de alívio. Com tudo às claras, o ponto final no namoro cheio de idas e vindas era uma
questão de tempo.
Foi cimentado por outro desentendimento, duas semanas depois.
Como a jornalista, muitos de nós consideramos inglória a tarefa de colocar limites em nossas relações, quaisquer que sejam: amorosas, familiares, profissionais… Vemos as demarcações do nosso espaço como muros que vão ficando mais altos cada vez que a gente frustra, impede a pessoa de fazer o que quiser, não adivinha nem realiza seus desejos.
No afã de deixar o terreno livre desses paredões, pouco a pouco o mato vai tomando conta. Quando permitimos tudo ao outro, a vegetação densa nasce em forma de discórdias, vazios e desgostos, além de invadir nossa identidade e bem-estar. Torna-se um lugar sufocante, impossível de se habitar.
Esquecemos que cercas são necessárias para cultivar um jardim bonito. E que podar uma planta, em vez de machucá-la, faz com que ela cresça com mais força e vigor. Delimitar o nosso espaço é a poda que constrói uma convivência saudável. “
O limite é a condição
para uma boa relação. É ele quem define os contornos dela e marca a diferença entre o que é bom e o que é ruim, permitindo que seja praticado o que faz bem a ambos e deixando de fora o que faz mal”, diz Ronaldo Coelho, professor de psicanálise.
Não devemos entregar mais do que podemos
Rechaçamos a frustração porque aprendemos que ela é fruto da falta de afeto. Sinal de que algo está errado. Um recado que diz com todas as letras que não gostamos o suficiente de alguém, ou que não nos importamos com a demanda posta.
Dizer “não” assusta muitos de nós porque dá a impressão de que vai destruir nossa disponibilidade, nosso afeto nas relações mais próximas, nossa competência diante do trabalho. Se não for alimentado por “sins” o tempo todo, temos medo de que tudo vire pó. De que o outro não reconheça o nosso valor e a nossa importância.
Pegando carona nessa ideia equivocada, não são poucas as pessoas que vivem à procura de alguém que as sirva em tempo integral, em todas as instâncias da vida. Dentro desse lugar, muitos assumem um papel de servo dos outros. Entregam-se mais do que podem. E, de alguma maneira, acreditam que o seu valor está no sacrifício do quão são capazes de cumprir.
“Aqui vem o enlace preocupante, pois a pessoa que muito serve, sem limites, pode estar em busca de um sentimento ilusório de onipotência. É como se ela sentisse que pode dar tudo ao outro justamente porque é uma espécie de supra-humano”, acrescenta Ronaldo.
Não consegue se descolar dessa imagem heroica porque se sente nua com suas limitações expostas. E aí entram sentimentos como medo da rejeição, medo de perder uma posição ou ficar sem o amor de alguém.
Aceite as suas limitações
Além disso, o medo do rompimento traz consigo um fantasma que diz que vamos ficar sozinhos para sempre. Encolhidos diante dele, mesmo os relacionamentos que fazem mal nos parecem uma alternativa preferível à solidão.
Por isso, soltar a mão da fantasia de ser perfeito é o primeiro passo para reconhecermos e aceitarmos nossas limitações. Demanda coragem e uma dose abundante de autoestima, mas quando ela parte, vem a recompensa. É quando percebemos que não é preciso ser um herói para merecer o bem-querer e o respeito de
quem quer que seja.
Censurados desde sempre
O curioso é que impor limites só vai ofender justamente aqueles que talvez estejam ultrapassando seus limites. E não é difícil entender por que se colocar parece errado. Nem todas as crianças são encorajadas a expressar sentimentos, vontades e opiniões. Ao contrário. Desde os primeiros anos de vida, são censuradas por isso e ensinadas a obedecer a ordens cegamente, mesmo sem entender o porquê.
E, quando falham, ainda precisam carregar a culpa. Quem nunca foi acusado da tristeza dos pais por não arrumar o quarto? À medida que vamos crescendo, outras pessoas se encarregam de abafar nossas vozes. Na escola, alunos que aceitam tudo são premiados, enquanto os que questionam correm o risco de receber retaliações.
Essa toada segue na vida adulta. Mesmo descontentes ou achando que o trabalho não está sendo feito como deveria, medimos as palavras para não perder o emprego. Não podemos contrariar líderes religiosos se não quisermos levar um sermão, nem autoridades públicas e políticas, sob pena de punição.
Também evitamos certas conversas em casa, com os amigos e colegas de empresa para evitar confrontos e conflitos. Vivemos tentando nos equilibrar em meio a
pressões e regras
vindas de todos os lados, que usurpam o nosso espaço e o nosso ser no mundo.
Com tantas exigências andando na contramão dos nossos propósitos, a vida que ansiamos vai ficando para trás. Enquanto isso, nos enchemos de cicatrizes emocionais que nos afastam dela cada vez mais. Às vezes nem notamos.
“Quando ficamos muito responsivos, agindo o tempo todo com objetivo de agradar ao outro, sem nos dar conta do que queremos e do que realmente é importante para nós, não são só os limites do que é bom ou ruim na relação que se apagam, mas principalmente os próprios limites do eu”, ressalta Ronaldo.
Escravos das expectativas alheias
Em parte, somos responsáveis por isso. Se dizemos muitos “sins”, somos vistos como alguém que está ali sempre disponível para distribuir favores. “Priorizar os outros manda uma mensagem para todos ao seu redor de que você não é tão importante”, lembra Lidia Weber, professora de psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Embora cheguem a nós tarefas que estão ao nosso alcance e nos enchem de prazer e sentido, uma porção delas só nos fazem atrasar ou roubar a nossa paz.
Sem a menor cerimônia, as pessoas pedem o que não queremos ou podemos fazer, ou o que vai numa direção oposta ao que acreditamos. Como se elas é que tivessem o controle sobre nossas vidas. Muitas vezes com a nossa permissão, quando a vontade de agradar e ser aprovado, o medo de desapontar o outro ou a culpa sentida por histórias parecem maiores do que o abuso.
Aí, sem uma bússola emocional, perdemos a capacidade de meditar sobre o que nos aproxima ou afasta do bem-estar e da felicidade. Simplesmente não percebemos o quanto estamos nos desrespeitando, magoando ou adoecendo. Por vezes, cai a ficha de que nos tornamos escravos das expectativas alheias.
Livre-se do entulho emocional
Termos ciência de que os nossos desejos estão trancados dentro de nós. Mas, por mais que calar nossos sonhos faça mal, não é fácil gritá-los ao vento. A simples ideia de estarmos sendo indelicados, agressivos ou egoístas nos paralisa.
Quantas vezes você ficou desconfortável para outra pessoa se manter confortável? Dá trabalho jogar fora todo esse entulho emocional, mas, quando o nosso espaço interior antes preenchido pela escuridão, é desocupado, ele se enche de luz e o esforço vale a pena.
“Às vezes uma reflexão simples não basta. É preciso refletir sobre si mesmo com mais profundidade, sobre o que gosta, o que te faz feliz, sentimentos, necessidades, o que e quem fazem com que você se sinta bem ou mal e quais são seus limites”, enumera Lidia.
Ombros mais leves
O caminho de volta à autoafirmação pode ser longo como aprender uma língua do zero. “A princípio, a pessoa se propõe a dominar palavras, expressões e regras fundamentais. De repente, torna-se capaz de se comunicar, utilizando o vocabulário de uma criança. Prossegue em sua aprendizagem até adquirir fluência nesse idioma estrangeiro. Dominando a nova habilidade, terá a liberdade de ser mais criadora com o emprego desse idioma, que se tornou para ela uma segunda língua”, exemplificam os autores Herbert Fensterheim e Jean Baer no livro Não Diga Sim Quando Quer Dizer Não
(Viva Livros).
Trazer à tona sentimentos
abandonados e pensar a vida que queremos ter no futuro são outras formas de encurtar esse caminho, segundo os autores. Exercícios simples, como falar “não” diante do espelho, também são eficientes. Se possível, filmando a cena.
“Dizer não faz com que você gerencie o estresse, permite que entenda e trabalhe suas habilidades e aprimora a comunicação”, afirma Lidia. Colocar limites na prática, em todas as relações, e pensar bem antes de falar um “sim” são dicas igualmente valiosas. A psicóloga sugere levar em conta os valores de vida e avaliar de que maneira o “sim” ou o “não” pode afetar o relacionamento em questão.
Há casos em que o melhor a fazer é não adiar o “não”. Ele deve ser dito na hora, sem palavras ásperas que machuquem a outra pessoa. Afinal, podemos ser firmes e ao mesmo tempo gentis. E o mais importante: colocar a autocompaixão na frente de qualquer situação.
Uma lição que Nathalie aprendeu depois do término do relacionamento. Passou a colocar o compromisso consigo em primeiro lugar, sem temer os julgamentos. “Percebi que tem um valor meu que preciso me dar se quiser que os outros também deem. Por que posso me desagradar e não desagradar o outro?”.
Foi assim que ela experimentou a sensação de pisar num mundo novo, onde não fica constrangida ou se vê na obrigação de dar desculpas quando não pode atender o pedido de alguém ou aceitar um convite. A leveza, ela sente não apenas nos ombros, que agora estão livres. Mas também na alma.
Por Sibele Oliveira – revista Vida Simples
Aprendeu a colocar divisórias em seu jardim interior. Desde então, ficou mais fácil arrancar as ervas daninhas.