Uma regra flexível e simples
A minha preferência, assim como a de muitos outros economistas, no Brasil e no exterior, é por regras flexíveis, simples e que não sejam pró-cíclicas, como são alguns tipos de âncoras. Em outros termos, melhor adotar regra ou arcabouço fiscal facilmente inteligível que dê margem à adoção de políticas anticíclicas sempre que necessário, permitindo que a política fiscal seja mais restritiva em períodos de aquecimento excessivo da economia e mais expansiva em períodos de recessão ou estagnação.
Um arcabouço fiscal desse tipo poderia tomar o seguinte formato. Seriam definidas, com certa antecedência, metas anuais para o resultado primário do governo na forma de uma banda, com distância ampla entre piso e teto. A lei preveria que, em épocas de recessão ou crescimento lento, o resultado ficaria próximo do piso; em épocas de crescimento elevado, próximo do teto. A regra não seria, assim, pró-cíclica.
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Evitar pró-ciclicidade é importante. Quando a economia cresce mais vigorosamente, as receitas públicas sobem e diminuem certos tipos de gastos, como o seguro-desemprego. O déficit se reduz, ou o superávit aumenta, de forma automática. O inverso ocorre quando a economia desacelera. O arcabouço fiscal teria que ser desenhado com esses efeitos automáticos em mente. E deveria deixar, além disso, certa margem para uma política fiscal ativa, capaz de proporcionar impulso ou contração fiscal, conforme a situação da economia.
Uma banda atenderia esses requisitos. Fixar uma meta única para o resultado primário já não. Em época de recessão, por exemplo, o resultado primário diminuiria automaticamente, distanciando-se da meta fixada. O governo, para cumprir o estabelecido, seria levado a cortar gastos ou aumentar tributos, reforçando o movimento recessivo da economia. Um erro seria, por exemplo, fixar um horizonte para zerar o déficit primário. Se a economia continuasse crescendo pouco ou nada, esse tipo de objetivo conduziria à recessão e ao aumento do desemprego.
Uma banda para o resultado primário tem algumas outras vantagens como alvo da política fiscal. Primeiro, o superávit ou déficit primário é uma variável conhecida, com longa série histórica. Segundo, é uma variável observada, e não construída por modelos, como seria por exemplo o resultado primário estrutural ou ajustado para excluir efeitos cíclicos. Terceiro, é um resultado sobre o qual a política fiscal tem razoável controle, diferentemente da dívida pública ou do déficit fiscal total, mais sensíveis a outros aspectos da política econômica e a variáveis fora do controle governamental.
A simplicidade da regra é outra vantagem. Um arcabouço complexo, com muitos dispositivos, cláusulas de escape e gatilhos, dificultaria a compreensão da proposta e o acompanhamento da sua execução. Seria, também, mais fácil desfigurá-lo durante a tramitação no Congresso, pois a complexidade abriria a porteira para todo tipo de ideia extravagante.
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Todo arcabouço deve prever também normas para o caso de descumprimento das regras. O que aconteceria se a regra aqui proposta fosse descumprida? Também nesse ponto seria preferível adotar procedimentos simples. Em caso de resultado fora da banda estabelecida, a Fazenda enviaria documento detalhado ao Congresso, justificando o desvio, a exemplo do que faz o Banco Central, em carta à Fazenda, quando a inflação escapa da banda no regime de metas para a inflação. O ministro da Fazenda, assim como deveria fazer o presidente do Banco Central, compareceria trimestralmente ao Congresso para dar explicações e responder a questionamentos sobre a condução da política e o cumprimento da meta.
O arcabouço proposto seria flexível demais? Não creio. Afinal, pergunto, por que o regime fiscal teria de ser mais rígido do que o monetário? A política fiscal deve, em princípio, ter o mesmo tratamento que a monetária. Isso facilitaria inclusive a harmonização das políticas fiscal e monetária, desejada pelo ministro Haddad. O essencial é que a regra ou regras sejam razoavelmente flexíveis, simples e fáceis de comunicar.
Política fiscal ativa – essencial para a retomada econômica com justiça social
O desafio é conferir alguma previsibilidade à política fiscal e ganhar confiança, sem perder o essencial, isto é, a flexibilidade para acionar programas sociais, os investimentos públicos e a reforma tributária. A economia brasileira experimenta uma estagnação que já dura dez anos. Continua a ser um dos países mais desiguais do mundo.
Alguém imagina que será possível redistribuir renda sem lançar mão de políticas de gasto e tributárias? Alguém imagina que a retomada virá da restauração da confiança na política econômica e dos efeitos dessa restauração sobre o consumo e o investimento do setor privado? A maior confiança poderia no máximo ajudar, reforçada pela suavização da política monetária.
A liderança tem que partir do Estado, único agente capaz de lançar e coordenar o esforço de retomada econômica e distribuição de renda. A política fiscal ativa constitui uma alavanca essencial que, coadjuvada pela mobilização dos bancos públicos e pela revisão da política monetária, poderá realizar os objetivos tantas vezes adiados de tirar a economia do marasmo e criar um país mais justo.
Paulo Nogueira Batista Jr. | Economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015.
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