A semana de inspeções em estabelecimentos prisionais e serviços penais de Goiás ofereceu um panorama da realidade vivenciada nos presídios do estado. A força-tarefa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), composta por magistrados e magistradas, servidores e servidoras, e assessoras e assessores liderados pela equipe do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), esteve em 19 das 94 unidades prisionais goianas e terá como resultado um relatório detalhado do estado de coisas verificadas nesses locais.
Um sinal da realidade dura intramuros se apresenta mesmo antes da chegada nas áreas de acesso restrito. À beira da estrada que leva ao Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia, nos arredores da região metropolitana da capital do estado, três camelôs em barracas, estruturas provisórias de lona e alumínio, aproveitam a carência de quem está condenado a ficar atrás das grades e a compaixão das suas famílias para fazer dinheiro. O básico que falta na cadeia, itens de higiene pessoal, roupas, sandálias e colchões, pode ser comprado de última hora, antes das visitas.
Chama a atenção a variedade de roupas amarelas em exposição sob as tendas, dependuradas em varais, com cabides, ou vestindo manequins de plástico. Como cada detento e detenta recebe dois conjuntos, com duas camisetas e duas bermudas, logo que chega à cadeia, as lavagens constantes à mão desgastam o tecido rapidamente. E o interno ou interna precisa contar com a ajuda de quem está fora do presídio para fazer a substituição do uniforme roto.
As barracas à beira da estrada também ofertam peças brancas e cinza. Isso porque uma norma pós-pandemia imposta pela Administração Penal de Goiás obriga que os visitantes usem uniformes para terem acesso aos parentes presos. Homens só podem chegar às áreas de visitação trajando camiseta e calça branca e calçando chinelas de borracha, com tiras. As mulheres que querem se encontrar com algum interno ou interna só podem fazer isso se vestirem camiseta branca e calça colante, tipo legging, cinza. A adoção desses padrões teria a ver com a facilitação de revistas e o impedimento da entrada de itens proibidos na cadeia.
Mas a imposição do uniforme para visitantes como uma exigência tem seus desdobramentos. Como não há vestiários na proximidade dos presídios, os familiares, nos dias de visitas ficam expostos como parentes de pessoa apenada pelo estado desde que saem das suas casas, quando transitam pelas ruas ou quando usam o transporte coletivo. E são comuns as mulheres que, por conta da sua crença religiosa, desistem de se encontrar com maridos e filhos para evitar o uso de uma roupa colante, bem diferente das saias e vestidos de uso diário.
O regime alimentar dos presos e presas está em processo de mudança. As ainda usuais três refeições diárias – café da manhã, almoço e jantar – podem passar a quatro. Isso porque, conforme a rotina ainda válida em presídios que receberam equipes do CNJ, entre a última alimentação, às 16h30, e a primeira do dia seguinte, às 7h30, o intervalo de jejum chegaria, diariamente, a quinze horas. Também há relatos de restrição à entrada de alimentos levados pelos parentes. Por isso, o arroz branco que sobra do almoço e do jantar fica de reserva para, antes do horário de dormir, servir de base para uma mistura com o achocolatado barato e um pão do café da manhã. “Vira a mesma coisa que um arroz-doce”, explica uma senhora grisalha, com mais de 60 anos, que cumpre pena na Penitenciária Feminina Consuelo Nasser, unidade do complexo de Aparecida de Goiânia.
Em Anápolis, a cerca de 65 quilômetros de Goiânia, os relatos das pessoas privadas de liberdade vão desde a falta de informação sobre situações processuais – que as impede de progredir de regime, por exemplo – até dificuldade para conseguir atendimento médico, muito embora haja uma Unidade Básica de Saúde (UBS) no presídio. O acesso ao estudo também é um desafio: 315 matriculados estudam de maneira “remota” – os livros são enviados para as celas e as atividades entregues são verificadas depois por uma professora, que tem pouco contato com os alunos.
O fomento à leitura nas unidades prisionais faz parte das ações do programa Fazendo Justiça, executado pelo CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e apoio da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen).
Orientação sexual
Pessoas autodeclaradas como parte da comunidade LGBTQIA+ – cuja prisão deve ser realizada em observância às diretrizes da Resolução CNJ n.348/2020 – possuem uma ala própria em Anápolis. No Brasil, apenas 3% das unidades prisionais (36 cadeias) possuem esses espaços destinados a esse público, segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen). Outras 100 unidades possuem celas exclusivas para essa comunidade.
Integrando a missão do CNJ, a juíza Andrea Brito, do Tribunal de Justiça do Acre (TJAC), ouviu presos e presas de todas as celas dessa ala e se deparou com relatos como a impossibilidade de receber tratamento hormonal no caso das mulheres transexuais, a falta de itens básicos de higiene pessoal, o corte forçado de cabelos e o desrespeito ao nome social escolhido pelas pessoas trans. “São situações que refletem a prática abusiva e violadora cotidiana do sistema prisional, com um padrão sistemático de violência e discriminação motivado pela orientação sexual ou pela identidade de gênero, demonstrando a falha das autoridades em criar mecanismos de proteção aos direitos e liberdades, além de configurar transgressão aos compromissos assumidos inclusive pelo o Brasil na ordem internacional”, explica Andrea Brito.
A magistrada se deparou ainda com o caso de uma pessoa dessa ala cujo processo sequer constava no sistema – para a Justiça, ela ainda era procurada, apesar de cumprir pena em Anápolis há seis meses.
Denúncias de tortura
Como em muitas outras unidades do estado, a existência de uma “cela de separação” também é uma realidade em Anápolis. Na ala C do presídio, as celas são numeradas de 2 a 12. A chamada C1 fica fora do campo de visão de quem visita. Durante a inspeção, no entanto, o juiz Jayme Garcia dos Santos Junior, do TJSP, descobriu o local por meio da denúncia dos presos e pediu para visitá-lo. A justificativa é que aquele espaço serviu como área de isolamento na época da pandemia, mas relatos das pessoas privadas de liberdade dão conta de sessões de tortura física e psicológica que acontecem ali. “Eles dão choque, jogam spray de pimenta, deixam a gente molhado, com frio, sem roupa e sem coberta”, diz um dos presos. A qualificação das inspeções judiciais para, entre outras irregularidades, detectar e registrar maus tratos e criar estratégias de prevenção faz parte das ações do Fazendo Justiça.
Castigos corporais, torturas, espancamentos também compuseram os relatos da inspeção Unidade Especial de Planaltina de Goiás, de segurança máxima, a 60 km de Brasília. A despeito das dezenas de câmeras de monitoramento instaladas no presídio, os responsáveis pela segurança dos presos se valeriam, segundo os próprios internos, dos pontos cegos que não são detectáveis pelas filmagens e até mesmo pelo desligamento de alguns equipamentos.
A violência entre detentos também é presente. Um homem de 33 anos de idade, vítima de tentativa de homicídio dentro do presídio, mostrou aos inspetores do CNJ as marcas deixadas pelo ataque com “chucho” – arma artesanal pontiaguda feita pelos próprios detentos. “Não morri porque consegui me desvencilhar, mas, desde que isso aconteceu, fico com medo de ser assassinado. Sei que é uma questão de tempo”, disse.
No caso de outro homem, de meia-idade, as ameaças não terminaram em morte porque um companheiro de cela, de 53 anos de idade, o avisou sobre as intenções de um determinado grupo em acabar com sua vida. “Naquela época, cerca de um ano atrás, ouvi dois colegas sendo mortos aqui. Quando soube que queriam matá-lo, perdi o sono pensando numa forma de falar com ele. Escrevi um bilhete e coloquei em pão que pedi para entregá-lo. Ele só foi ler o bilhete no dia seguinte, conseguiu se salvar. Mas eu passei a ser jurado de morte também”, descreve.
Além da miséria e da violência, os presos são submetidos a uma espécie de abandono jurídico. O acesso a advogados, para aqueles que têm condições de pagar, foi reduzido de uma hora para 20 minutos. Os que dependem da intervenção de um defensor público enfrentam dificuldades ainda maiores. Condenado a 28 anos, um homem cumpriu nove e teve mais 20 anos acrescidos à sua pena pela morte de um colega de cela na própria unidade de Planaltina de Goiás. Hoje, ele não sabe dizer quanto tempo falta ou se há possibilidade de reduzir a pena. Em outra situação, um preso está há uma semana apto para sair da prisão, mas não foi liberado.
Outro fato grave diz respeito ao isolamento da família, cuja visita presencial está suspensa em diversas unidades. Em Planaltina, são apenas 20 minutos via teleconferência, mas nem sempre os presos conseguem marcar um horário. Alguns não têm contato com família há muitos meses e relatam famílias desfeitas ou laços familiares perdidos pela distância.
A remição de pena também é um sonho distante para os internos dessa unidade. Embora a estrutura preveja um laboratório de informática e uma biblioteca, esses espaços seguem sem uso ou com utilização precária. A biblioteca passou a funcionar depois de muito protesto dos presos, por meio da doação de livros dos familiares e distribuição entre os internos. Cada cela recebe três livros por mês, não importando se algumas abrigam oito detentos.
A missão do CNJ na capital e no interior de Goiás ouviu as demandas e verificou as necessidades dos internos, para entender o funcionamento do sistema carcerário local e dos órgãos de Justiça na região. O relatório preliminar da missão conjunta da Presidência do CNJ e da Corregedoria Nacional de Justiça nas unidades prisionais de Goiás pode ser acessado aqui. Todos os achados serão consolidados em um relatório final, robusto, vasto, com densidade e cuidado técnico, para adoção de medidas que efetivamente reparar as falhas e transformar a realidade vista em carne e osso.
Texto: Luis Claudio Cicci, Nataly Costa e Ana Moura
Edição: Sarah Barros
Agência CNJ de Notícias