Painéis solares colocam espécies em risco na Caatinga
POR RAFAEL MARTINS
No dia 14 de maio de 2024, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) da Bahia autorizou a empresa norueguesa Statkraft Energias Renováveis a realizar o desmatamento de 1.524 hectares de floresta de caatinga arbórea – cerca de 1.500 campos de futebol – no topo das serras situadas entre as cidades de Uibaí e Ibipeba, no centro-norte da Bahia. O objetivo era a instalação de 1.384.240 painéis de placas solares.
Segundo estudo publicado pelo próprio Inema, a área diretamente afetada possui 230 espécies de plantas, das quais 15 estão ameaçadas de extinção, e outras 200 espécies animais do bioma Caatinga, sendo que 64 espécies não sobrevivem fora do ambiente de floresta.
As águas também são impactadas pelo empreendimento, pois a área serve de recarga para os rios Verde e Jacaré, afluentes do Rio São Francisco. Do total desmatado, 441 hectares são áreas de preservação permanente (APPs). Mesmo assim, o relatório técnico considerou o empreendimento de baixo impacto ambiental e o Inema concedeu a licença.
Vale lembrar que a mesma Statkraft já está instalada na região com o Complexo Eólico Ventos de Santa Eugênia, onde 14 parques eólicos, totalizando 91 turbinas, constituem o maior empreendimento da empresa fora da Europa.
Segundo Edimário Oliveira Machado, uma das principais lideranças contra a instalação do parque solar, o desmatamento autorizado pelo Inema é “inadmissível”: diz ele que, a poucos metros das áreas licenciadas, há terrenos em abundância, já desmatados, com condições para acolher o empreendimento e ainda gerar receitas de arrendamento para a agricultura familiar local.
Isso numa região que já tem mais de 90% de sua caatinga desmatada na área agricultável. “Nós precisamos da Caatinga lá do alto da serra para manter o equilíbrio do ambiente. Sem a vegetação, não teremos água para alimentar os aquíferos nem o ambiente necessário para a reprodução da fauna”, diz Edimário.
Willianilson Pessoa da Silva, mestre em Zoologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), confirma a fala de Edimário, sustentando que a recomendação é que os parques solares sejam feitos em áreas já desmatadas. “Já que vai precisar fazer terraplanagem, o correto é procurar uma área já degradada, e na Caatinga existem muitas áreas desertificadas. E o melhor é que a instalação do parque solar não necessita de altitude, como os eólicos, por causa do vento. O mesmo sol que bate lá em cima chega aqui embaixo”, ele explica.
Edimário é presidente da Umbu (União Municipal em Benefício de Uibaí) e coordenador do Colegiado de Desenvolvimento Territorial de Irecê (Codeter). Foi através dessas representações, e em parceria com o Sindicato dos Produtores Rurais de Irecê e o Comitê das Bacias Hidrográficas dos Rios Verde e Jacaré, que Edimário ingressou com mandado de segurança pleiteando uma ordem judicial liminar suspendendo as licenças ambientais que autorizam o desmatamento de reservas de caatinga nas serras dos municípios de Uibaí e Ibipeba. O pedido de socorro ao Judiciário se deu porque o Inema adotou postura inflexível em relação às ponderações da sociedade civil, encaminhadas em dezembro de 2023 através de seis representações formais.
“A licença está cheia de vícios, erros e irregularidades”, diz Edimário, argumentando que, em uma reunião em Salvador com a diretoria do Inema, o diretor de fiscalização do próprio órgão reconheceu que um licenciamento desse porte jamais poderia ser feito sem analisar ao menos três alternativas locacionais. “E não houve nenhuma alternativa analisada, somente a que foi apresentada pelo empreendedor. E nós sabemos que, em um raio de 1 quilômetro, existem áreas sem vegetação, planas e com o mesmo nível de insolação, o que permite que o complexo solar seja híbrido.”
Quem também esteve presente nessa reunião foi a educadora ambiental Marilza Pereira da Silva, conhecida como Índia Catingueira, que levou à equipe da Mongabay a conhecer a área onde estão acontecendo as obras para a instalação do complexo solar. Ali, declarou que “é doloroso assistir máquinas e caçambas depositando o que sobrou da vegetação retorcida no solo. Mais doloroso ainda é visualizar, durante o caminho, as placas de boa intenção da empresa com o meio ambiente, sinalizando as nascentes, as cachoeiras. Mas não há de fato uma consciência. Eles colocam essas placas como um ato de reparação, mas sem plantar uma árvore. Nós visitamos o Riacho do Garapa após a chuva e não havia água porque a nascente está soterrada.”
A batalha judicial pela preservação da Caatinga
Diante das irregularidades verificadas no licenciamento, no dia 29 de novembro de 2024 o Tribunal de Justiça da Bahia acolheu o pedido do Ministério Público e suspendeu a instalação do complexo solar. No entanto, no dia 20 de dezembro, Statkraft conseguiu a suspensão, por 90 dias, dessa decisão de primeira instância. O prazo de 90 dias é o tempo suficiente para que seja finalizada o desmatamento. Quem requereu essa decisão ao Tribunal foi o Estado da Bahia.
Procurada pela reportagem da Mongabay, a empresa emitiu uma nota informando que, “após a suspensão da liminar que paralisou as obras no final de novembro, o Complexo Santa Eugênia Solar informa que os mais de 600 trabalhadores retornarão às atividades, contribuindo diretamente para o desenvolvimento da região, na sequência do recesso de final de ano. Documentos adicionais serão entregues para reforçar que o licenciamento atendeu rigorosamente todos os requisitos legais e ambientais.”
E continua: “A empresa reafirma sua confiança no processo de licenciamento, que foi conduzido com profundidade técnica e transparência, cumprindo todas as regras legais e ambientais. Todos os estudos necessários para a compreensão integral dos eventuais impactos ambientais na área de instalação foram realizados, incluindo análises detalhadas de fauna, flora, patrimônio natural, entre outros. Com base nesses estudos e em boas práticas ambientais, foram implementados programas de monitoramento, controle e mitigação dos impactos socioambientais.”
Em resposta à retomada das atividades, no dia 6 de janeiro de 2025 uma grande mobilização foi montada: o “Grito da Caatinga”, que reuniu em Uibaí representantes de 68 instituições locais, unidas em protesto para exigir o imediato cancelamento da licença ambiental. A manifestação foi realizada na estrada e teve forte adesão da população local, com faixas, carros de som e gritos de ordem. Os trabalhadores da empresa escutaram as reivindicações dos manifestantes até as 9:30, quando a manifestação se dissipou.
Um vídeo da fala de Edimário durante a manifestação circula na internet e faz a pressão sobre a empresa crescer dentro da Noruega. O ministério norueguês da Indústria e da Pesca, responsável pela empresa Statkraft, está sofrendo questionamentos de reportagens locais sobre a forma como a empresa vem se posicionando em relação ao desmatamento em áreas desertificadas no Brasil.
Uma revolução verde contra o desmatamento
Em paralelo à batalha contra o desmatamento, a comunidade local vem também se empenhando em recuperar aquilo que já estava degradado. Em Uibaí, uma das figuras fundamentais nesse processo é Hamirto da Rocha Machado, conhecido na região pelo apelido de Hamirtão.
Ele é responsável por uma verdadeira revolução verde na região, concentrada em seu sítio Rancho Fundo, onde desde 1976 vem se dedicando a replantar espécies nativas da Caatinga. Hamirtão não faz ideia de quantas árvores já plantou, mas afirma que já saíram mais de 1 milhão de mudas do Rancho Fundo e que elas estão espalhadas por todo o Brasil. Sem contar as mudas que ele mesmo plantou na região.
Diz Hamirtão que levou um tempo até encontrar a maneira certa de fazer suas mudas vingarem: “Eu colocava as mudas de plantas junto dos minadores de água, aí era eu colocando de manhã e as cabras comendo de tarde. É porque eu plantava na seca, até que eu aprendi a fazer o reflorestamento depois da chuva. Porque quando chove cria mato e as cabras sobem pela serra para comer. Quando elas descem já estão de barriga cheia e deixam as mudas que eu havia plantado lá”.
Foi observando o trabalho de reflorestamento de Hamirto que Edimário resolveu chamá-lo para fazerem juntos o replantio da grota do Mané José, uma importante área de minação de água que havia secado após o local ser utilizado para criação de gado e ter sofrido repetidas queimadas durante seis décadas. Desde 2008 já foram plantadas mais de 8 mil mudas de plantas nativas. E o local, que estava quase desertificado, se transformou. Hoje produz sementes e garante parte da água que é consumida pela comunidade de Uibaí.
Durante o processo, os sócios da Umbu adquiriram uma área vizinha à grota do Mané José, onde fizeram a primeira Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) da região, a primeira ação desse tipo feita pela população com o intuito de preservar a natureza local.
Segundo Edimário, a grota do Mané José deverá ser impactada novamente pelo desmatamento que acontece no topo da serra: “Lá em cima, no topo da serra, é ponto de recarga de toda essa parte baixa, e essa água não vai mais infiltrar como antes. Ela vai escorrer por outros caminhos e vamos ter uma perda de suprimentos para os minadores”.
Este texto foi republicado de Mongabay sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original.
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