Projeto que renegocia dívida dos estados impulsiona endividamento público, com impacto nos juros, afirmam economistas
O projeto que oferece um nova alternativa para pagamento, pelos estados, de dívidas bilionárias com o governo federal tem o potencial de impulsionar ainda mais a dívida pública brasileira — que já está em patamar elevado para o padrão de países emergentes.
O cálculo foi feito por economistas ouvidos pelo g1.
O texto foi aprovado nesta quarta-feira (14) pelo pelo Senado Federal. Para ter validade, o texto ainda precisa passar pelo crivo da Câmara dos Deputados.
O governo calculou, em março, que as dívidas dos estados somam mais de R$ 700 bilhões. A maior parte do valor se refere aos débitos de quatro estados: São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
O tema está sendo discutido em um momento no qual o governo tenta equilibrar suas contas, buscando o déficit zero neste ano e em 2025, justamente para tentar impedir o crescimento da dívida pública — indicador acompanhado com atenção por investidores, que influencia a taxa de juros da economia.
Cálculos
De acordo com Felipe Salto, economista-chefe Warren Investimentos, ex-secretário da Fazenda e Planejamento do estado de estado de São Paulo, o projeto elevaria a dívida pública, até 2033, em 2,4 pontos percentuais do Produto Interno Bruto (PIB) se aprovado, o equivalente a um aumento de R$ 462 bilhões no período.
Segundo Jeferson Bittencourt, head de macroeconomia da ASA Investments, ex-secretário do Tesouro Nacional, a estimativa preliminar é de que a dívida pública avance de 1,8 ponto percentual no mesmo período de dez anos com as novas regras.
Esse cálculo considera o desconto em juros que todos estados teriam. Levando em conta que somente São Paulo não tem ações na justiça para não pagar a dívida atualmente, o efeito de aumento na dívida seria menor.
“Aumenta a incerteza fiscal. E mais incerteza fiscal é mais prêmio de risco, é mais juros, pois piora a dinâmica da dívida. Quanto isso vai ser repassado, é difícil de a gente saber. Pois pode ser que seja diluído ao longo de um monte de coisas. Mas uma coisa que é estrutural e que os investidores que ser dedicam a isso já perceberam, é que as questões federativas tem decisões assimétricas. Os estados tem uma guarida no Judiciário [para não honrar os contratos, por meio de liminares]”, acrescentou Jeferson Bittencourt, da ASA Investments.
Pelas regras das dívidas com a União, quando os estados não honram os pagamentos mensais de suas dívidas, ou de parcelas de empréstimos com garantia federal, o Tesouro Nacional pode bloquear repasses do Fundo de Participação dos Estados (FPE) para reaver os valores.
Nos últimos anos, entretanto, a União foi impedida de realizar esse bloqueio por liminares do Supremo Tribunal Federal. Estados como Goiás, Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Amapá, Bahia e Rio de Janeiro se beneficiaram, em algum momento, dessas decisões, que começaram em 2019.
Posteriormente, alguns estados entraram no Regime de Recuperação Fiscal (RRF) do governo federal. Seus débitos foram consolidados e têm regras próprias de pagamento. Estão no RRF, atualmente, Goiás, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Minas Gerais teve o seu pedido de adesão aprovado e está elaborando o seu plano de recuperação.
Comparação internacional e impacto na economia
A dívida do setor público consolidado fechou o mês de junho em 77,8% do PIB – o equivalente a R$ 8,7 trilhões, segundo informações do Banco Central.
Se for considerado o critério do Fundo Monetário Internacional (FMI), que contabiliza os títulos públicos que estão na carteira do BC e que é utilizada na comparação internacional, a dívida brasileira terminou o primeiro semestre em um patamar maior ainda: em 88,6% do PIB.
Neste patamar, a dívida brasileira está abaixo de nações desenvolvidas, próxima de países da União Europeia e acima dos emergentes, da América Latina e do Caribe.
A relação entre dívida e PIB é um indicador relevante para o mercado, interpretado como um sinal da capacidade do país de honrar seus compromissos financeiros de curto, médio e longo prazo. Quanto maior a dívida em relação ao PIB, maior o risco de um calote em momentos de crise.
Além do patamar da dívida, a performance das contas públicas também é avaliada por investidores.
O Tratado de Maastrich, por exemplo, assinado em 1992 pelos países da União Europeia, diz que as nações do bloco devem buscar um déficit fiscal inferior a 3% do PIB (pelo conceito nominal, que inclui o pagamento de juros). Em 2023, o déficit nominal do Brasil somou 8,9% do PIB — o equivalente a R$ 967 bilhões.
No ano passado, em meio a ataques do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para baixar a taxa de juros da economia, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, explicou no Congresso Nacional como a dívida pública influencia a taxa de juros brasileira.
“Na parte dos juros, a gente não pode confundir causa e efeito. A dívida não é alta porque o juro é alto. É o contrário, o juro é alto porque a dívida é alta. Quando você endividado vai ao banco, e o banco faz uma análise que você é endividado e não paga a dívida, o juro é alto”, explicou Campos Neto, na ocasião.
O que diz o projeto do Senado
O texto aprovado pelo Senado Federal possibilita que os entes que aderiram ao atual regime de recuperação fiscal migrem para esse novo plano, chamado de Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag). Essa mudança de um regime para o outro será gradual, dentro de cinco anos.
Os estados não são obrigados a aderir ao plano. Os que o quiserem terão 120 dias, após a lei entrar em vigor, para fazê-lo. Os débitos serão pagos em um prazo de 30 anos.
O benefício não será retroativo. O saldo total da dívida não vai mudar. O relator, Davi Alcolumbre (União-AP), reforçou nesta quarta que “não existe desconto na dívida existente”. Pode haver abatimento do saldo do débito, mas não alteração do valor. A nova taxa de juros, por exemplo, valerá só daqui para frente.
Os entes poderão abater o valor cheio da dívida se transferirem para a União ativos (participação em empresas públicas), bens, imóveis e créditos.
O projeto foi capitaneado pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Há expectativa de que o estado dele, Minas Gerais, que deve ao menos R$ 160 bilhões à União, transfira para o governo federal suas participações nas companhias estaduais de energia, desenvolvimento e saneamento — Cemig, Codemig e Copasa.
Na terça-feira (13), porém, Alcolumbre reconheceu que uma das partes sensíveis do projeto é que haverá divergências futuras entre as gestões estaduais e federal quanto ao valor desses ativos, na hora da transmissão dos bens.
Hoje, as dívidas são corrigidas pelo que for menor entre a taxa básica de juros, a Selic, e uma soma da inflação oficial e 4% ao ano. O projeto mantém o formato atual dos juros (IPCA + 4%), mas prevê mecanismos para reduzir e até zerar esse índice adicional.
O estado terá de direcionar obrigatoriamente uma parte – que pode variar de 1% a 2% – do montante da dívida para um fundo de equalização, compartilhado entre todos os estados brasileiros, inclusive os não endividados. Com essa medida, o ente reduzirá até dois pontos percentuais dos juros adicionais.
A depender de quanto cada estado colocar no fundo compartilhado, o estado poderá zerar os juros que excedem a inflação de outras maneiras:
menos 1 ponto percentual: se o ente entregar seus ativos à União, em um montante de 10% a 20% do valor total da dívida;
menos 2 pontos percentuais: se o total de ativos entregues chegar a mais de 20% do valor da dívida;
de 0,5 a 2 pontos percentuais: se o valor correspondente for revertido em investimentos no próprio estado, nas áreas de educação, infraestrutura e segurança pública. A maior parte dos recursos, mínimo de 60%, vai para educação profissional técnica de nível médio.
O estado que não optar pela entrega de ativos vai poder diminuir até 2% em juros apenas realizando os investimentos locais, especialmente em educação profissionalizante. Portanto, o ente poderá zerar os juros adicionais somente com o investimento e o repasse para o fundo compartilhado.
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